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domingo, outubro 17, 2010

A cada seis segundos, uma criança morre de fome no mundo



por Leonardo Sakamoto


Segundo a organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), estima-se que 925 milhões de pessoas se deitem com fome todas as noites. O número é menor que o 1,023 bilhão do ano passado, mas ainda assim ultrajante. Tão ou mais é o fato de que uma criança, a cada seis segundos, morre de causas relacionadas à fome no mundo. Seis segundos. E dois terços dos subnutridos estão em sete países: Bangladesh, China, Índia, Indonésia e  Paquistão (Ásia) e Congo e Etiópia (África).
Hoje, é o Dia Mundial da Alimentação. E também aniversário da FAO – criada em 1945, ano em que termina a Segundo Grande Guerra – que completa 65 anos. A data serve para lembrar que a paz não é apenas uma questão de depor baionetas, mas também universalizar uma vida digna. O mundo não terá uma paz real se houver alguém, em algum lugar, que passar o dia sem comer, enquanto outros arrotam fartura. Existe maior violência do que passar sentir a dor de não ter nada para comer?
Tempos atrás, para tratar da efeméride, eu trouxe algumas fotos que tirei – da época em que ainda fotografava – e algumas reflexões. Por conta de políticas públicas implantadas no Brasil para redução da pobreza extrema ou do fim de guerras no exterior, fiquei sabendo que a situação em alguns desses lugares mudou. Mas representam a cara de um desafio que ainda existe por aqui e por lá.
Campo de refugiados em Caxito, Angola. O país enfrentou uma longa guerra civil e não conseguiu garantir condições mínimas de sobrevivência a suas crianças. Dinheiro há – Angola é rica em recursos mineirais, como petróleo e diamantes. Mas o país vem sendo roubado há décadas por governos e elites locais bisonhos e pilhados por empresas multinacionais, entre elas algumas brasileiras.

Vale lembrar que não é a simples doação de alimentos que vai resolver o problema. Ela é um ato importante, pois mantém pessoas vivas enquanto se criam condições para que elas possam trabalhar (decentemente), nos campos ou cidades, e obter seu próprio sustento. O problema é que, nem sempre, essa segunda parte, estrutural, ocorre.
Pai e filho procuram sustento em lixão no interior de Pernambuco. O cheiro e as moscas não eram o pior naquela situação, mas a certeza que eu tinha de que aquelas pessoas simplesmente não existiam. A casa e os utensílios domésticos vinham do que a sociedade não queria mais. Parte do que eles comiam, também.

Combater a fome é bordão citado por políticos em eleição, empresas que querem limpar a barra, entidades não-governamentais e artistas em busca de redenção social. Se bem que nesta eleição, isso tem sido raro – aborto aparece mais do que a fome. Triste, né? Há também aqueles que preferem defender a superficialidade das ações cosméticas. Até porque mudanças estruturais significam cortes na carne, como uma ampla reforma agrária e a mudança de prioridade na aplicação de recursos públicos. Benefícios dos mais ricos têm que dar lugar às necessidades dos mais pobres.
Mas aí, a porca torce o rabo! Vem a turma do deixa-disso, não seja radical, o brasileiro é de paz (tradução: os explorados são uns moles e idiotas), o mundo é assim mesmo, cansei!, uns comem muito outros pouco e vai se levando, olha a legalidade, respeite a propriedade… Traduzindo: mudar sim, desde que tudo fique como está. Sabe como é: tem gente que tem nojo de pobre.
Povoado de Malvinas, no interior do Rio Grande do Norte. A família havia perdido a safra devido à seca. A menina, desnutrida e com tamanho menor do que sua idade pedia, fazia aniversário no mesmo dia que eu. Para vocês, uma informação inútil. Mas para mim, arrasadora.

Durante a ditadura, esperou-se o bolo crescer para dividi-lo. Mas ele cresceu e só alguns foram chamados para comê-lo. Ou melhor, na receita já estava previsto que o bolo era para poucos – a cozinheira é que foi enganada pela sinhá. O aumento na produção de determinadas commodities que não são destinadas para alimentação segue pelo mesmo caminho – vamos dispor de terras que eram importantes para a produção de comida para gerar mercadorias cujos lucros não serão, nem de longe, divididos.
Acampamento guarani no interior do Rio Grande do Sul. De vez em quando vem à tona a notícia de que alguma criança indígena morreu por desnutrição em algum lugar do Brasil. O avanço do agronegócio e das cidades têm expulsado muitos povos indígenas de suas terras ou transformando-as em favelas, o que tira deles sua autonomia alimentar. No Mato Grosso do Sul, isso tem sido tristemente constante. Com a ampliação da cana no estado, isso está piorando.

A FAO informa que o aumento na produção de alimentos terá que ser da ordem de 70% para suprir uma população de 9 bilhões de pessoas em 2050. E quem vai produzir essa comida extra? Segundo as Nações Unidas, os pequenos produtores e suas famílias (que representam cerca de 2,5 bilhões de pessoas ao redor do mundo, têm um papel fundamental) atuando com menos impacto ambiental. Há muita gente querendo plantar no Brasil, pequenos agricultores. Só lhes falta terra, recursos, escoamento, capacitação, tecnologia. Oportunidade.
De acordo com a FAO, na América Latina, poucos países têm legislação que afirmam o direito à alimentação de todos, como Argentina, Equador, Guatemala e Brasil – que tem sido reconhecido como referência em programa de combate à fome e à pobreza extrema, mas ainda tem que suar para erradicar essa vergonha.
Mulher segura filhos desnutridos em comunidade rural de Sao José da Tapera, interior de Alagoas. O lugar já foi considerado o município mais pobre do país, ou melhor dizendo, com menor índice de desenvolvimento humano. A seca lá bate forte e, ironicamente, o São Francisco está a poucos quilômetros da comunidade. O projeto de transposição do Velho Chico vai levar água para abastecer cidades, empresas e o agronegócio – mas será que conseguirá atingir as famílias no meio do sertão. Se, hoje, o poder público não consegue garantir água para essas duas crianças, o que dirá de levar água até a menina desnutrida de duas fotos atrás?

De acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA), do total de famintos na América Latina e Caribe, quase 9 milhões são crianças com menos de cinco anos de idade. Por isso, só coloquei fotos delas neste post.
Isso também serve para pôr à mesa, cheia ou vazia, que nosso futuro está à espera de soluções firmes para a erradicação da fome. Será que nossa geração terá a coragem de demolir estruturas enraigadas desde a fundação do país, que garantem que uns tenham tudo e outros nada?
Eu espero que sim – apesar de achar que não.

Fonte blog do Sakamoto

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